terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Perfídia Temporal


   Um olhar, um sorriso, uma expressão, foi o que bastou. Mais não se esperava, mais não se pedia. Foi o que bastou para reacender o lume do que nunca na verdade se diluíu...permanecendo ali, morno, aceso, latejante. A espera do tempo foi sumindo com a chama quente, sem nunca se apagar na totalidade. Arrefecido e quase inerte, mais não foi necessário do que uma pequena chispa para o reavivar, agora mais intenso, agora mais cheio e preenchido porque como se sabe, chama reanimada aquece muito mais. Ao ponto de queimar quando nada se faz para o evitar. Para mais quando não se quer evitar, nem isso é importante. Importante é precisamente o contrário. Deixar arder...
Os anos volvidos podiam ter posto um fim, até porque a brasa não dura sempre. Não pode durar. Não deve. 
Mas o fogo tem as suas vontades, tem as suas manias. E ai de quem diga que não. Só diz que não quem nunca viu chama, nem a procurou para seu conforto. O fogo arde quando tem de ser e assim lhe apetecer, mesmo que o combustível ou o comburente não o queiram. Basta a sua junção para que a chama nunca se cale...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Até partires.









     Olho para ti. Os olhos quietos, serenos e incapazes de ver para além do mundo em que permaneces e que não é, nem nunca foi o teu. Um mundo triste, onde nada se passa e onde nunca nada parece ter acontecido. Recordo com a alma embargada o dia em que te vi, nos teus cinco ou seis ou sete anos. Não sabes do que falo - é natural - tu não me conheces. Não conheces nada, nem ninguém. Nem locais. Nem datas. A noite e o dia são um só, intercalados pelos lençóis em que te deito à noite e te faço repousar. Recordo, dizia, a tua alegria; o sorriso e a galhofa quando jogavas com a bola que o teu pai te dera - porque só tivera uma menina e as meninas não podem jogar à bola: só brincar com bonecas. Mas ele queria brincar com a sua filha, a sua perdição, a sua vida. E deu-te aquela bola vermelha que tu incansavelmente tentavas acompanhar rua abaixo. Um chuto...dois e pimba! Bola a rebolar e a saltar rua abaixo. As vizinhas chateadas porque a roupa branca estava a secar ao Sol e se a bola lhe acertasse, lá teriam que repetir a barrela. Maldita mania da Maria-rapaz. Ó miúda! vai brincar às comidas...não vês que ainda me sujas a roupa? O teu pai ria-se ao longe, que eu bem o via e a tua mãe pedia desculpa e ralhava contigo. Eu era um ano mais velho e tinha vontade de ir lá para fora brincar contigo, mas a minha mãe não deixava. Eras filha do Doutor da aldeia e eu era apenas o filho do João Marceneiro. Gente assim diferente não se mistura, Pedro. Cada um no seu sítio. Mas eu bem via que tu olhavas quando te observava da janela. Ganhei coragem e acenei-te. Acenaste de volta e sorriste. O teu sorriso marcou toda a minha vida. Quis Deus, ou o Diabo, ou mesmo eu e tu que vinte anos depois casássemos. O filho do João Marceneiro com a filha do Dr. Carlos Costa. Foi festa rija na Aldeia - Nessa altura tinhas regressado de Lisboa, depois da Faculdade e eu nem tinha acabado o Liceu. Um analfabeto e uma doutora. Seguir as pisadas dos pais fora inevitável. Agora era eu o Marceneiro da aldeia. E a aldeia tinha não um, mas dois médicos. Era uma grande evolução! Quis também Deus, ou o Diabo que o teu pai deixasse este mundo no ano seguinte.  Nunca te vira tão triste. O teu olhar estava naquele dia como está hoje. Longínquo. Vazio. Sem o sorriso - porque tu sorrias com a boca e com o brilho do olhar - para aquecer o mais gélido frio. Naquele dia morreu uma parte da tua vida. Só ganhaste nova alma um ano depois, quando nasceu o nosso Carlos. Um renascer do avô que não conhecera, mas que sempre estava presente, mais não fosse pela Casa em que habitávamos. As vizinhas cumprimentaram, beijaram, pegaram ao colo como se o "Carlitos" fosse o novo boneco da aldeia - e era, que ali os mais jovens éramos nós até então-. A tua mãe velhota ainda lhe fez as primeiras sopas e mudou e lavou muita fralda. Mas acabou por descansar de vez, deitada no solo ao lado do teu pai. Tinha o Carlos cinco anos. Decidimos mudar de rumo poucos dias depois e tu voltaste a Lisboa. Eu e o Carlos fomos pela primeira vez à Capital, onde tudo corria depressa, onde tudo era grande e diferente. Vivemos uma época feliz, dias bonitos, a ver o Carlos passar de criança a homem. Os estudos - puxou a ti e ao teu pai, felizmente -, as namoradas, o primeiro automóvel. Até ao dia em que casou e se mudou para o Porto. Ficámos os dois sós, na companhia um do outro. Sempre juntos, ainda muito apaixonados como se fosse o primeiro dia. Foi já perto dos teus setenta que tudo mudou. Primeiro um esquecimento, depois as teimosias e as certezas que eu sabia serem incertas. Uns meses bastaram. Agora olhas à tua volta e nem te lembras onde estás. À janela do nosso quarto, olhando para a rua e a ver o dia fazer-se noite, ali permaneces. A repetir infinitas vezes histórias de coisas que se passaram há um ror de anos, ou criadas por uma fantasia. A tua fantasia. Hoje não sabes quem eu sou, nem o que fomos um para o outro. Não sabes que tens um filho e que um dia, na aldeia que nos viu nascer - há tantos, tantos anos -, corrias alegre atrás de uma bola. Ao olhar para o teu sorriso sem sentido nem razão, vejo apenas a mulher que eu amei e amarei para todo o sempre. Até partires, meu bem. Até partires.

Sonhos








        Acordar de um sonho é sempre triste. Se fosse bom acordar, não seria um sonho: antes um pesadelo. Temos na mente uma imensidão de ilusões, repletas de desejos que a serem realizados, fariam de nós seres mais felizes. Um sonho é isso: a realização - ainda que imaginária - de um desejo. Tudo se conjuga na mais perfeita perfeição quando sonhamos. Até o sonho mais improvável nos parece real. Sonhamos a dormir; sonhamos acordados; raios...sonhamos até enquanto falamos com alguém ou quando a nossa atenção é necessária em tudo menos naquilo que sonhamos. Sonhar é bom e é nesses momentos que se vivem alegrias como se fossem reais. E são! É por isso que as crianças são felizes. Porque sonham e acreditam naquilo que sonham. E sonham com brincadeiras e jogos; campos onde jogar à bola e correr sem destino é obrigatório, sem pressa para chegar ao final: sem nunca se cansar. Deixamos de sonhar porque crescemos e quando crescemos ficamos secos de sonhos felizes. Sonhamos com coisas reais e deixamos de lado o sonho porque sabemos - alguém nos disse e nós comprámos - que são isso mesmo: apenas sonhos! E sonhamos com amores e desamores; com dinheiro e com morte e com tristezas porque tristes é aquilo que nós somos.

          Naquele dia acordei e estiquei-me na cama. Não estavas. Sonhei contigo e tu não estavas. Já não estavas à uns dias. Penso que semanas ou meses. Talvez um ano. Seguramente dois. Queria que ali estivesses porque ficou tanto para te dizer; tanto para sorrirmos juntos. Deixei de sonhar naquele dia com outra coisa que não connosco. Mas tu já sonhavas com outro "nosco" que não eu e eu não percebi porque apenas vivia para mim. Tu bem mandaste sinais pelo ar. As conversas ao telefone. As SMS. As chegadas tardias a casa porque houve reunião. E eu sonhava que era verdade porque queria acreditar que era verdade. Mas não era. E eu em casa à espera, a sonhar que ias entrar pela porta da rua e mesmo antes do jantar - ou ceia -, fazíamos amor na sala. Mas tu não querias fazer amor. Querias uma queca. E eu não sabia, ou nem me preocupei em saber porque eu julgava que sabia o que era melhor e o melhor era fazer amor. Mas amor faz-se com ninfas e deusas gregas, lá no alto do seu pedestal. Seres irreais que não sentem nem são gente, nem fodem como loucos quando o calor sobe e a tesão aumenta. E eu era prisioneiro; refém de um ideal concebido por mim e para mim, mas que nada tinha a ver contigo, que eras - e és - mulher. Terrena, carnal e não etérea. Com desejos como todas as outras. Tu para mim não eras outra: eras tu; eras eu e eras nós porque me sentia completo enrolado nos teus braços, envolto nas tuas pernas, de mãos entrelaçadas nas tuas. Tu querias mais. Querias prazer - hoje sei disso - porque todos somos o que sentimos. Os beijos são um prelúdio; as carícias um fósforo para acender o curto pavio do desejo; desejo que nasce, cresce e morre numa repentina explosão minutos depois. Desejo que se quer reaceso com mais fúria e mais lascívia, mas que aqui o parvo não acompanhava: por julgar que bastava ficar enrodilhado numa massa de corpos deitados e perguntar "foi bom?".

                E foi por sonhar que era apenas o amor que nos unia que não percebi os teus sonhos. Tu acordaste e seguiste-os. Eu deixei-me ficar acordado sem sonhar que também tu sonhavas. Até que partiste em busca deles e foste sonhar para longe.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A Lagoa



   


Ali estava sentado, à espera. Não sabia bem do quê, mas esperava. Parecia-lhe aliás a melhor solução. A única pensava para si mesmo. Enquanto isso, metros mais à frente, uma equipa médica lutava incansavelmente por um sinal de vida no olhar. Nada parecia resultar. Dez minutos, quinze, vinte e por fim, deram por terminado todo o esforço sem qualquer sucesso. A vida tem mortes assim. Estúpidas. Todas as mortes são estúpidas quando se é apenas uma criança. Ele observava afastado, junto de si um psicólogo tentava mostrar-lhe que a vida tem que continuar. Tudo ruiu quando viu a brancura do lençol a tapar por completo o corpo da pessoa que mais amava no mundo. Mais do que a si mesmo. Mais que o maior amor que um dia sentiu. Não queria; não podia acreditar. Não aceitava que com doze anos alguém pudesse fechar para sempre os olhos. Tanta brincadeira que ainda havia. Tanto escorrega para descer, Natais para festejar, prendas para rasgar o papel e bolos de anos para saborear - chocolate! Tinham de ser sempre de chocolate. Parecia não haver sabor no mundo que mais lhe agradasse. Tudo agora perdera o sentido. Olhava com os olhos fixos, nublados pelas gotas que lhe transbordavam das pálpebras e escorriam pelo rosto. Pudera trocar de lugar com ele e não hesitaria uma única vez. Nos seus quarenta e três anos nunca sentiu uma dor tão imensa. A ponto de lhe rasgar a alma, que é impossível de rasgar. Nada, nem ninguém merece uma dor assim. Tudo porque naquele dia decidiu ir nadar na lagoa da Aldeia que o viu nascer. E levar consigo o seu mais-que-tudo. Em casa, lembrara-se agora, certamente que a mãe estava a preparar a refeição. Um fim-de-semana com Feriado dá sempre um jeitaço para pôr em dia as tarefas de ser pai e filho: umas corridas atrás de uma bola, umas quedas de bicicleta quando se teima em fazer com o corpo aquilo que depois dos quarenta se torna mais difícil. Um minuto de distracção...uma merda de um minuto. Não foi mais que isso e nesse mesmo minuto a sua alegria de viver esvaiu-se; desvaneceu-se na água. Encarar-se seria desde hoje a maior mágoa que poderia viver. Agora precisava de um abraço; de sentir à sua volta o suave - mas doce - perto de peito no peito e ouvir "Adoro-te Pai!". A vida do seu filho era a sua vida e agora que o perdera, perdera com ele a sua vida. O choro já não saía porque todas as lágrimas que tinha dentro de si tinham já encontrado o caminho que corre rosto abaixo, perdendo-se para sempre como para sempre se perdeu alguém que se ama. Imaginava o dia seguinte - não porque o quisesse viver, que por si juntava-se já ao seu filho - : o escuro vazio da dor e da ausência; a demência da solidão mesmo que acompanhado; a vida quando apenas se merece a morte! Porquê? A pergunta que sabia não ter resposta mas que teimava em vir-lhe ao pensamento a cada minuto volvido. E o cheiro fétido do medo; o amargo no fundo da boca porque rodeado de água, olhava à volta e perdera o seu menino de vista. O pânico era cada vez maior. Pedro, deixa-te de brincadeiras parvas...Pedro! Pedro! Vais apanhar se não apareceres...Nada. Apenas o silêncio e uma calma estranha nas águas. Mergulhou; tornou a mergulhar; mergulhou uma terceira vez e nada! O horror espelhado no rosto transfigurava-o. Não era ele. Não podia ser ele. Ele tinha um filho e quem ali estava perdera o seu. Nadou para terra na esperança de ouvir as gargalhadas traquinas que o tranquilizariam, mas não as ouviu. As roupas estavam no mesmo sítio onde as deixaram - as do Pedro amontoadas como se fossem rodilhas -. Olhou à volta e ainda nada. Pegou no telefone e ligou o 112. Foi a meia-hora mais longa da sua longa vida até chegarem os Bombeiros e o INEM. Foi mais uma hora até encontrarem o corpo debaixo de toda aquela água e o trazerem para terra. E foi ali, mesmo no local onde tantas vezes brincara quando era da idade do Pedro, que toda a sua vida morreu. Era de noite quando chegou à casa da Aldeia. Entrou e nem ligou aos choros da mãe e da mulher porque ele próprio já tinha chorado todas as entranhas. Deitou-se na mesma cama onde na noite anterior o seu filho sonhara, respirou bem fundo todo o cheiro que ele ali deixara e ganhou novas lágrimas para derramar.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

As mãos


     

          As mãos. As mesmas mãos que lhe afagaram o rosto e lhe pentearam a franja com os dedos, tantas vezes quantas conseguia recordar. As mesmas mãos em que depositou incontáveis beijos enquanto dedos nos dedos, se entrelaçavam com as suas. Pele com pele; de mão dadas como se fossem um só ser. Mãos que apertara junto do seu peito, de forma a sentirem o coração bater acelerado. Mãos que lhe limparam lágrimas quando as agruras se faziam sentir, e lhe acalentavam a esperança de nunca estar só. Mãos agora emaranhadas, depositadas sobre o peito; braços dobrados e sorriso leve no rosto; calmo; sereno. Sorriso que só ele podia ver, que só ele conhecia porque a conhecia toda uma vida e as pessoas quando se conhecem assim, sabem tudo o que a outra pensa. Ali deitada, imóvel; em paz; de olhos fechados (quase) a dormir.
            Recordava-se de tudo por que passara; de tudo o que vivera. Tinha agora oitenta anos; ainda mancebo cumprira o Serviço Militar em Goa no Batalhão de Caçadores das Beiras e com carinha de miúdo, foi despejado durante dois longos anos naquela terra que nunca sonhara conhecer, longe do ponto mais longe que alguma vez visitara em vida. Chegou em Maio de 1959. Casou em Novembro e sorriu com ela por breves cinquenta e cinco anos. Um fogacho, dizia sempre que passava mais um ano e festejavam outro aniversário.
            Agora as suas mãos já não acendiam o lume à noite; agora estavam ali quietas e ele olhava para elas e lembrava-se de quando lhe afagavam o rosto. Sabia que nessa noite, ia sentir-se perdido, como quando se perdeu no bosque no dia em que foi com o pai buscar lenha e decidiu correr sem direcção. Mas desta vez não tinha ninguém que o procurasse; ninguém que lhe secasse as lágrimas que sentia brotarem-lhe da alma quando lhe vinham à memória os momentos que passara com a sua “velhinha”.
            As filhas bem lhe disseram venha connosco para Lisboa; o pai não vai ficar aqui sozinho. Deixar a Aldeia? Nunca: ali é o seu lugar. Só saiu da terra para fazer o Serviço Militar e nunca mais. O mundo é muito grande mas é para os outros. Para mim ser feliz é estar aqui sentado, à soleira da porta; beber um copo na taberna do Ti Jacinto; ver o nascer e o pôr-do-sol por trás do Monte e sentir-me junto dela. Descambou. O choro aprisionado na alma encontrou fuga – ainda era do tempo em que os homens não choravam – quando se lembrou: a minha Mariana. E agora?
            As filhas agarradas a ele; os netos a correr uns com os outros, fartinhos de ali estar; a Aldeia toda presente e ele ali a chorar. E as filhas a dizer o pai devia vir connosco para Lisboa e ele a dizer que nunca saíra dali.
            O Padre da Aldeia chegou. Disse a Missa. Fechou-se o Caixão e todos seguiram no funeral até ao cemitério. Ao chão desceu a sua Mariana, e ele a chorar – que vergonha, um homem a chorar – a minha Mariana. Fiquei sem a minha Mariana. Punhados de terra a bater na madeira, e as filhas e os netos a partir rumo às suas vidas: o pai não quer mesmo vir connosco? Nem pensar, que eu nunca saí da Aldeia sem ser no Serviço Miliitar.
            Em casa, nessa noite, sonhou que era outra vez novo; a sua Mariana era uma moça bonita, cheia de vida e dançava junto ao ribeiro, pés descalços afogados na água. Sorriu-lhe e deram as mãos. As mãos que se entrelaçavam nas suas e lhe afagavam o rosto. Caminharam lado a lado juntos e ele ganhou uma nova esperança. A esperança de sonhar com ela todas as (poucas) noites que ainda lhe restavam até que as suas mãos se cruzassem de vez sobre o seu próprio peito.