As
mãos. As mesmas mãos que lhe afagaram o rosto e lhe pentearam a franja com os
dedos, tantas vezes quantas conseguia recordar. As mesmas mãos em que depositou
incontáveis beijos enquanto dedos nos dedos, se entrelaçavam com as suas. Pele
com pele; de mão dadas como se fossem um só ser. Mãos que apertara junto do seu
peito, de forma a sentirem o coração bater acelerado. Mãos que lhe limparam
lágrimas quando as agruras se faziam sentir, e lhe acalentavam a esperança de
nunca estar só. Mãos agora emaranhadas, depositadas sobre o peito; braços
dobrados e sorriso leve no rosto; calmo; sereno. Sorriso que só ele podia ver,
que só ele conhecia porque a conhecia toda uma vida e as pessoas quando se
conhecem assim, sabem tudo o que a outra pensa. Ali deitada, imóvel; em paz; de
olhos fechados (quase) a dormir.
Recordava-se de tudo por que
passara; de tudo o que vivera. Tinha agora oitenta anos; ainda mancebo cumprira
o Serviço Militar em Goa no Batalhão de Caçadores das Beiras e com carinha de
miúdo, foi despejado durante dois longos anos naquela terra que nunca sonhara
conhecer, longe do ponto mais longe que alguma vez visitara em vida. Chegou em
Maio de 1959. Casou em Novembro e sorriu com ela por breves cinquenta e cinco
anos. Um fogacho, dizia sempre que passava mais um ano e festejavam outro
aniversário.
Agora as suas mãos já não acendiam o
lume à noite; agora estavam ali quietas e ele olhava para elas e lembrava-se de
quando lhe afagavam o rosto. Sabia que nessa noite, ia sentir-se perdido, como
quando se perdeu no bosque no dia em que foi com o pai buscar lenha e decidiu
correr sem direcção. Mas desta vez não tinha ninguém que o procurasse; ninguém
que lhe secasse as lágrimas que sentia brotarem-lhe da alma quando lhe vinham à
memória os momentos que passara com a sua “velhinha”.
As filhas bem lhe disseram venha
connosco para Lisboa; o pai não vai ficar aqui sozinho. Deixar a Aldeia? Nunca:
ali é o seu lugar. Só saiu da terra para fazer o Serviço Militar e nunca mais.
O mundo é muito grande mas é para os outros. Para mim ser feliz é estar aqui
sentado, à soleira da porta; beber um copo na taberna do Ti Jacinto; ver o
nascer e o pôr-do-sol por trás do Monte e sentir-me junto dela. Descambou. O choro
aprisionado na alma encontrou fuga – ainda era do tempo em que os homens não
choravam – quando se lembrou: a minha Mariana. E agora?
As filhas agarradas a ele; os netos
a correr uns com os outros, fartinhos de ali estar; a Aldeia toda presente e
ele ali a chorar. E as filhas a dizer o pai devia vir connosco para Lisboa e
ele a dizer que nunca saíra dali.
O Padre da Aldeia chegou. Disse a
Missa. Fechou-se o Caixão e todos seguiram no funeral até ao cemitério. Ao chão
desceu a sua Mariana, e ele a chorar – que vergonha, um homem a chorar – a minha
Mariana. Fiquei sem a minha Mariana. Punhados de terra a bater na madeira, e as
filhas e os netos a partir rumo às suas vidas: o pai não quer mesmo vir
connosco? Nem pensar, que eu nunca saí da Aldeia sem ser no Serviço Miliitar.
Em casa, nessa noite, sonhou que era
outra vez novo; a sua Mariana era uma moça bonita, cheia de vida e dançava
junto ao ribeiro, pés descalços afogados na água. Sorriu-lhe e deram as mãos.
As mãos que se entrelaçavam nas suas e lhe afagavam o rosto. Caminharam lado a
lado juntos e ele ganhou uma nova esperança. A esperança de sonhar com ela
todas as (poucas) noites que ainda lhe restavam até que as suas mãos se
cruzassem de vez sobre o seu próprio peito.